Software ruim e a ilusão dos testes unitários gerados por IA

22/09/2025 Por Ramon Durães

A inteligência artificial evoluiu e hoje apoia todo o ciclo de desenvolvimento de software. Mas existe um fenômeno recorrente em empresas de todos os tamanhos. Dashboards verdes, relatórios acima de 90% e líderes confiantes vivendo uma realidade onde as métricas criam uma ilusão de segurança e escondem riscos e complexidade técnica.

Depois de décadas liderando projetos em setores como financeiro, varejo e indústria, apoiando auditorias profundas e ajudando empresas a recuperar sistemas críticos, vi o mesmo padrão se repetir inúmeras vezes. Indicadores de cobertura e relatórios impecáveis disfarçando arquiteturas frágeis e código difícil de evoluir. Do outro lado, falhas críticas em produção revelando verdades incômodas: por trás de métricas bonitas, encontramos sistemas caros de manter, cheios de riscos ocultos e que exigem heróis para continuar funcionando.

Essa ilusão não é nova. O que mudou com a IA foi a velocidade. Agora geramos testes unitários em massa sobre sistemas mal projetados, criando números impressionantes que alimentam a falsa sensação de qualidade.

O problema não está na IA, mas na falta de fundamentos arquiteturais que sustentem a automação e permitam que esses números reflitam a realidade.

Estratégia de software não é opcional

Décadas de evolução em estratégias, boas práticas e padrões de desenvolvimento mostram que muitos profissionais ainda não entendem o que realmente significa arquitetura de software. Para alguns, ela é apenas um diagrama bonito ou a escolha de um framework da moda, como se a ferramenta certa resolvesse por mágica problemas estruturais profundos. Essa é uma das armadilhas mais perigosas da superficialidade técnica, acreditar que modernidade visual ou a tecnologia “certa” substituem disciplina arquitetural e engenharia sólida.

Na prática, arquitetura é a forma como o sistema é estruturado para ser compreensível, testável, seguro, escalável e principalmente adaptável. Não importa quantos frameworks novos sejam adotados, se as bases de modularidade, coesão, baixo acoplamento e clareza de responsabilidades não estiverem presentes, o software continuará frágil e os custos aumentarão até explodirem em crises operacionais.

Uma arquitetura bem projetada cria sistemas preparados para evoluir com segurança e previsibilidade, apoiada em fundamentos inegociáveis como separação de responsabilidades, padronização, manutenibilidade, testabilidade, reuso e independência. Princípios como escalabilidade, segurança desde o design, observabilidade, resiliência e eficiência garantem soluções flexíveis, confiáveis e sustentáveis ao longo do tempo.

Quando ignorados, o resultado é inevitável. Em uma auditoria recente, uma alteração simples em uma regra de cálculo paralisou processos críticos porque o sistema acumulava dependências excessivas, lógica de negócio misturada e ausência de testes relevantes. Nesse contexto, testes gerados por IA apenas replicaram a fragilidade existente e criaram métricas artificiais, sem proteger o negócio de riscos reais.

Métricas que realmente importam

A cobertura de testes é relevante, mas isoladamente não garante qualidade nem confiabilidade. Para avaliar software de forma consistente, é essencial combinar a cobertura com métricas de desempenho, confiabilidade e qualidade interna do código. Referências consolidadas como DORA Metrics e SonarQube ajudam a criar uma visão mais completa e confiável.

Métricas de desempenho e confiabilidade

Lead Time for Changes, Deployment Frequency, Change Failure Rate, Time to Restore Service, Mean Time Between Failures, Defect Escape Rate

Métricas de qualidade e manutenibilidade do código

Cyclomatic Complexity, Debt Ratio, Code Duplication Rate, Maintainability Index

Esse conjunto complementa a cobertura de testes e permite avaliar velocidade, estabilidade e manutenibilidade de forma equilibrada, evitando conclusões enganosas baseadas apenas em números isolados.

A magia da IA nos testes unitários

A forma como a IA gera testes ajuda a entender essa falsa sensação de segurança. O modelo lê o código, analisa funções, cria casos básicos de teste e mede quantas linhas foram executadas. Em minutos, a cobertura dispara e a percepção de qualidade cresce na mesma velocidade.

Mesmo com métricas bem definidas, sem fundamentos arquiteturais a IA apenas acelera a produção de números que não refletem a realidade, criando uma sensação artificial de qualidade, pois apenas cobertura não é sinônimo de segurança.

Os critérios de verificação costumam ser superficiais, limitando-se a checar retornos imediatos e exceções genéricas. A IA não interpreta intenção nem compreende prioridades de negócio sem referências claras e arquitetura bem definida.

Sistemas confusos, com lógica espalhada e dependências excessivas, geram resultados igualmente confusos.

Sem estrutura modular, dados consistentes e regras explícitas, a IA só replica fragilidades e valida o trivial, ignorando cenários críticos que realmente colocam o sistema em risco.

O resultado é previsível. Rotinas essenciais permanecem vulneráveis enquanto funções irrelevantes recebem a mesma atenção. O código continua acoplado, difícil de testar isoladamente, e a IA apenas aumenta a velocidade com que métricas ilusórias são produzidas. Testes assim não cobrem cenários extremos, não simulam falhas reais, não avaliam concorrência nem garantem consistência de negócio. É tecnologia criando números, mas sem resolver problemas estruturais.

O paradoxo da automação

Nunca houve tanta automação, capacidade computacional e ferramentas avançadas. Mas os problemas continuam os mesmos. A diferença é que agora sistemas frágeis são construídos mais rápido, métricas enganosas são geradas em menos tempo e a dívida técnica cresce sob a aparência de modernidade.

Automação sem fundamentos arquiteturais não reduz risco. Apenas acelera o próximo incidente.

É como aumentar a velocidade de um carro sem verificar os freios. A confiança criada pelos relatórios não corresponde à realidade técnica do sistema.

Cada sprint que ignora princípios arquiteturais adiciona complexidade invisível. A cada nova entrega, a base se torna mais instável e o risco operacional aumenta até explodir em falhas críticas, atrasos e perda de confiança dos clientes.

Qualidade real exige fundamentos

Sistemas robustos não nascem de métricas bonitas. Eles começam na arquitetura. Quando os princípios já citados são aplicados, o código se torna claro, modular e previsível.

Com essa base, a IA não precisa ser usada para decifrar sistemas confusos nem gerar testes a partir de código mal estruturado. Ao contrário, ela pode acelerar o desenvolvimento, otimizar validações e reduzir riscos, porque trabalha sobre um código projetado para ser entendido tanto por pessoas quanto por máquinas. Isso também reduz alucinações e falhas introduzidas por modificações feitas às pressas.

O mercado cria expectativas virtuais de que a arquitetura acontece sozinha porque existem frameworks, ferramentas modernas e relatórios sofisticados. Mas a realidade é outra. Sem disciplina técnica e padrões claros, cada projeto segue em uma direção diferente, as equipes não se comunicam e milhões são desperdiçados tentando manter sistemas frágeis, cheios de remendos e dependentes de heróis para funcionar.

Qualidade real não vem de promessas. Ela vem de fundamentos aplicados com consistência, criando sistemas que podem evoluir sem virar caos nem consumir orçamentos inteiros em correções.

Responsabilidade além da velocidade

Liderança técnica responsável entende que velocidade não pode vir antes de clareza estrutural. Quanto mais tempo e dinheiro se gastam tentando fazer a IA entender código confuso, gerar testes em sistemas frágeis ou explicar funcionalidades sem documentação nem modularidade, mais cara e arriscada a operação se torna.

O caminho correto é criar sistemas claros, modulares e independentes, onde cada parte tenha responsabilidades bem definidas e possa ser compreendida isoladamente. Isso reduz desperdícios, evita retrabalho e permite que a IA seja usada para o que realmente importa, como acelerar inovação e aumentar confiabilidade, e não para apagar incêndios gerados pela falta de arquitetura.

Empresas que confundem velocidade com progresso constroem expectativas virtuais que não se sustentam. Sem arquitetura sólida, cada novo projeto vira uma aposta cara, sem reaproveitamento real, sem integração consistente e sem base para crescer com segurança. A verdadeira liderança garante disciplina técnica, comunicação clara e padrões que protegem a empresa de desperdícios milionários e da perda de confiança do cliente.

Considerações finais

A inteligência artificial, os testes unitários e a cobertura são aliados poderosos, mas sem uma arquitetura sólida eles viram apenas números bonitos que criam uma falsa sensação de eficiência e segurança no projeto de software.

Para CTOs, arquitetos e líderes técnicos o recado é direto. O caminho não é desacelerar nem rejeitar a IA, e sim recuperar a disciplina arquitetural, aplicar métricas consistentes e construir sistemas capazes de evoluir com segurança.

Quando princípios de arquitetura sustentam a automação, os testes e a inteligência artificial, qualidade e velocidade deixam de ser promessas e se transformam em vantagem competitiva real.

O futuro pertence a quem une fundamentos técnicos, liderança responsável e inovação com propósito e não a quem confia em métricas isoladas ou soluções mágicas.

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Até a próxima !!!

Ramon Durães